A figura do berço remete a conforto e aconchego maternal. Também a certezas e comodidades. Se alguém “tem berço”, para o imaginário popular, é porque nasceu com mais chances de prosperar. Porém, e isso o povo também sabe, essa condição nem sempre garante uma vida adulta saudável e bem-sucedida. Que o diga a Parábola dos Talentos: há os que gastam o que têm, enquanto outros simplesmente enterram. Mas apenas os sábios multiplicam.
O Brasil, pois, possui um berço que, de tão esplêndido, até virou letra de seu Hino. Ora, é dispensável detalhar a fertilidade do nosso solo, as amplitudes continentais do desenho territorial, a diversidade cultural da sociedade, as múltiplas vocações das matrizes produtivas, a riqueza da biodiversidade e, especialmente, a alma leve e bondosa da gente brasileira. É difícil encontrar lugar do mundo que, por desígnio natural, detenha tantas graças reunidas em torno de si.
Claro que, por outro lado, também somos fruto de uma origem civilizacional controversa, cujos ônus respingam até hoje em nosso cotidiano. O patrimonialismo, apenas para ficar no exemplo mais flagrante, é legado de um processo colonizatório que se fez de cima para baixo: por aqui, antes aportou a Coroa Portuguesa; só depois vieram os súditos, sob o comando e a dependência do poder já estabelecido. Público e privado facilmente se confundiram. E sugar do Estado, por dentro e por fora da lei, se transformou numa prática lamentavelmente habituada à fotografia do cenário brasileiro.
Porém, apesar dos pesares – e não há nação, mesmo as mais desenvolvidas, cujo passado não tenha seus pesares –, nosso berço continua sendo esplêndido. Os reveses jamais poderiam ser justificativa suficiente no confessionário dos pecados nacionais. Há culpas e culpados maiores e menores, por óbvio. Mas quem percebe a vocação para o trabalho do Rio Grande do Sul, a capacidade produtiva do Mato Grosso, o potencial turístico do Rio de Janeiro, a força econômica de São Paulo, o ímpeto transformador de Minas Gerais ou a riqueza cultural da Bahia – para ficar apenas em alguns modelos – não se permite desanimar. Em vez de chafurdar na história para encontrar réus, mais inteligente é por os pés no presente e lançar os olhos ao futuro.
Nosso cordão umbilical rumo a esse destino foi cortado com a abertura política. Através dela fomentamos bases mais sólidas em direção a um Brasil maduro. Antes, tudo era muito efêmero, incerto e encabulado. Não ter certeza da liberdade, afinal, é uma sensação inibidora de qualquer iniciativa humana individual ou social. Inibidora de sonhos, inclusive. Mas essa barreira foi vencida, e hoje a democracia é prática assimilada. O ingresso na vida adulta, todavia, se deu com a estabilidade econômica. Se até então já podíamos sonhar, foi só a partir daí que conseguimos por em curso, com segurança, as projeções de tantos anos.
Com esse alicerce solidificado e os parâmetros macro e microeconômicos credibilizados e em vigor, eis que dobravam os sinos: era chegado o momento de não mais deitar eternamente em berço esplêndido, mas de acordar para as múltiplas possibilidades que se punham no destino. Foi defronte dessa linha divisória que o Brasil se viu nas últimas décadas. Era hora de navegar mar adentro, voar mais alto, acelerar o passo, ir além.
Ainda estamos no curso desse caminho. Difícil dizer se no começo ou no meio – jamais no fim. O fato é que o nosso País foi guindado à posição de emergente, faz parte do Brics, libertou-se da dívida externa, é referência no cenário regional e mundial. É player. Já não se cogita apenas pelo futebol ou carnaval, Pelé ou Ronaldinho – mesmo que isso permaneça em nossos afetos. Contudo, nossas pretensões no ambiente diplomático global ainda são tratadas com desdém (não raras vezes, por justificados motivos). Internamente, estamos atravancados em defeitos que só dizem respeito a nós mesmos: emperramento da infraestrutura, defasada legislação tributária, sistema político-eleitoral contraditório, impunidade, educação de baixa qualidade e por aí afora. Nossa culpa, nossa tão grande culpa – necessária autoconfissão!
Conjuntural ou estruturalmente, ainda há pedras na estrada. Algumas maiores e outras menores, mas quase todas absolutamente vencíveis. Nosso estágio é semelhante à crise existencial dos 40 anos de idade. A poesia da juventude animou a vida até aqui, mas agora é preciso, como já se disse, entrar em campo e agir de verdade. Isso significa, saindo do terreno da figuração, ampliar as possibilidades de empreender e trabalhar, acabar com a miséria absoluta e diminuir a desigualdade social. Ou ainda: permitir que mais pessoas – de preferência, por elas mesmas – alcancem suas diferenciadas finalidades existenciais.
Por Germano Rigotto
Ex-governador do RS, que nesta terça-feira, dia 29 de junho lança seu livro “Para além do berço esplêndido”